
Num belíssimo ensaio, o filósofo Giorgio Agamben afirma: “Escrevemos para nos tornarmos
impessoais”. O que isso quer dizer? Segundo o filósofo, cada sujeito é formado por duas dimensões, uma pessoal, outra impessoal. A pessoal é o Eu, a consciência, a identidade; o que em nós é constituído, sabido, reconhecido. A parte impessoal é o que, “em nós, nos supera e nos excede”, é o que nos revela “que nós somos mais e menos do que nós, mesmos”, é uma “zona de não reconhecimento” em nós mesmos. Essa impessoalidade constitutiva de toda pessoa, Agamben argumenta que ela é chamada, desde a Antiguidade latina, de “Genius”, de onde vem nosso “gênio”.
Genial, assim, é essa passagem aberta, dentro de cada pessoa,à impessoalidade. Explico. Quando alguém está dançando, o corpo lançado ao sentido da música, o eu esquecido desi mesmo – esse alguém está na dimensão impessoal, está “genial”. Quando se faz uso de uma droga, de um alterador de consciência, e se sente o eu distanciar-se, a identidade enfraquecer-se, cedendo lugar a outro registro – isso é “genial”. Ora, a criação artística exige uma passagem do eu a esse outro que o habita, a seu gênio(as musas evocadas pelos poetas antigos, são outro modo de entender essa exterioridade que nos inspira). Daí que, na língua corrente, genial tenha se associado sobretudo à figura do artista. A genialidade define um modo de vida em que o eu se disponibiliza a desconhecer-se. “Viver com Gênius significa viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não conhecimento”.
Para mim, é por isso que se escreve, ou, ao menos, é por isso que escrevo: para transcender os limites tediosos, neuróticos do meu eu. Se há uma saúde em escrever (que sob tantos outros aspectos parece ser uma prática doentia), ela está aí, no sair de si. É uma forma de limpeza do eu. Sobre essa passagem à alteridade, deixo soarem os belos versos de Antônio Cícero: “Não se entra no país das maravilhas/ pois ele fica do lado de fora/ Não do lado de dentro. Se há saídas/ que dão nele, estão certamente à orla/ iridescente do meu pensamento,/ jamais no centro vago do meu eu.”
Falta-nos ainda responder à seguinte pergunta: para quem escrever? Gosto sempre de lembrar, a propósito, a boutade de tom Zé: “Toda vez que ouço falar em público-alvo me abaixo, com medo de levar um tiro”. Não é por acaso que essa expressão pertence ao campo da publicidade. As coisas não são tão puras quanto alguns teóricos creem, e sob alguns aspectos a publicidade pode se aproximar da arte. Mas quando se fala em público-alvo a diferença é enorme. Um alvo é aquilo que se deve, primeiro, identificar, marcar, para depois atingir. A publicidade está interessada, portanto, na parte do eu que é o eu: ela mira o que, no sujeito (ou consumidor), é identificável, o que se pode saber sobre ele, sobreseu desejo, para lhe oferecer o queele espera. A publicidade, assim, diz respeito ao que o sujeito é. A arte (como o pensamento) está interessada no que o sujeito pode ser.
Ora, todo mundo, potencialme4nte, pode ser o que não é. Todo mundo pode ampliar-se, desconhecer-se, para re-conhecer-se maior. Deve-se escrever mirando essa negatividade, isto é, procurando uma linguagem que ativará, nas pessoas, o que elas não são. É por isso que só se pode – aspectos sociológicos provisoriamente descartados – escrever para ninguém. Ninguém é parte impessoal que pode ser ativada em cada um. E é por isso que qualquer grande escritor, apesar dos equívocos pseudodemocratas, escreve para todos.
(jornal O Globo, 15 de setembro de 2010, com adaptações)
Genial, assim, é essa passagem aberta, dentro de cada pessoa,à impessoalidade. Explico. Quando alguém está dançando, o corpo lançado ao sentido da música, o eu esquecido desi mesmo – esse alguém está na dimensão impessoal, está “genial”. Quando se faz uso de uma droga, de um alterador de consciência, e se sente o eu distanciar-se, a identidade enfraquecer-se, cedendo lugar a outro registro – isso é “genial”. Ora, a criação artística exige uma passagem do eu a esse outro que o habita, a seu gênio(as musas evocadas pelos poetas antigos, são outro modo de entender essa exterioridade que nos inspira). Daí que, na língua corrente, genial tenha se associado sobretudo à figura do artista. A genialidade define um modo de vida em que o eu se disponibiliza a desconhecer-se. “Viver com Gênius significa viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente vinculado a uma zona de não conhecimento”.
Para mim, é por isso que se escreve, ou, ao menos, é por isso que escrevo: para transcender os limites tediosos, neuróticos do meu eu. Se há uma saúde em escrever (que sob tantos outros aspectos parece ser uma prática doentia), ela está aí, no sair de si. É uma forma de limpeza do eu. Sobre essa passagem à alteridade, deixo soarem os belos versos de Antônio Cícero: “Não se entra no país das maravilhas/ pois ele fica do lado de fora/ Não do lado de dentro. Se há saídas/ que dão nele, estão certamente à orla/ iridescente do meu pensamento,/ jamais no centro vago do meu eu.”
Falta-nos ainda responder à seguinte pergunta: para quem escrever? Gosto sempre de lembrar, a propósito, a boutade de tom Zé: “Toda vez que ouço falar em público-alvo me abaixo, com medo de levar um tiro”. Não é por acaso que essa expressão pertence ao campo da publicidade. As coisas não são tão puras quanto alguns teóricos creem, e sob alguns aspectos a publicidade pode se aproximar da arte. Mas quando se fala em público-alvo a diferença é enorme. Um alvo é aquilo que se deve, primeiro, identificar, marcar, para depois atingir. A publicidade está interessada, portanto, na parte do eu que é o eu: ela mira o que, no sujeito (ou consumidor), é identificável, o que se pode saber sobre ele, sobreseu desejo, para lhe oferecer o queele espera. A publicidade, assim, diz respeito ao que o sujeito é. A arte (como o pensamento) está interessada no que o sujeito pode ser.
Ora, todo mundo, potencialme4nte, pode ser o que não é. Todo mundo pode ampliar-se, desconhecer-se, para re-conhecer-se maior. Deve-se escrever mirando essa negatividade, isto é, procurando uma linguagem que ativará, nas pessoas, o que elas não são. É por isso que só se pode – aspectos sociológicos provisoriamente descartados – escrever para ninguém. Ninguém é parte impessoal que pode ser ativada em cada um. E é por isso que qualquer grande escritor, apesar dos equívocos pseudodemocratas, escreve para todos.
(jornal O Globo, 15 de setembro de 2010, com adaptações)
Olá, amigo!
ResponderExcluirFiz uma visita rápida por aqui! Depois retorno para excurcionar um pouco mais aqui em suas escritas!
Abraços!